“Se o STF mantiver o termo ‘pacote’ na tese, tendência é criminosos verem seus problemas de logística resolvidos”
CLÁUDIO CABRAL FAY DE AZEVEDO JÚNIOR – Auditor fiscal da Receita Federal desde 2006, atualmente lotado na Seção de Administração Aduaneira da Delegacia da Receita Federal em Caxias do Sul (RS). Graduado em Engenharia de Produção pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), com especialização em Comércio Exterior e Direito Aduaneiro pela Universidade Católica de Brasília
Está para ser julgado pelo pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) o Tema 1.041: “admissibilidade, no âmbito do processo penal, de prova obtida por meio de abertura de encomenda postada nos Correios, ante a inviolabilidade do sigilo das correspondências”.
A questão em julgamento (cujo leading case é o Recurso Extraordinário 1116949/PR) discute, considerado o artigo 5º, incisos XII e LVI, da Constituição Federal, a licitude de prova obtida mediante abertura de pacote postado nos Correios para respaldar condenação de militar ante a prática do crime tipificado no artigo 290, § 1º, inciso II, do Código Penal Militar – tráfico de entorpecentes.
Por enquanto, a tese firmada é que “sem autorização judicial ou fora das hipóteses legais, é ilícita a prova obtida mediante abertura de carta, telegrama, pacote ou meio análogo”.
Se essa decisão prosperar, pavimentar-se-á um caminho para o crime no varejo, com envio de drogas, mercadorias descaminhadas, contrabandeadas, contrafeitas etc. por todo território nacional.
O sigilo da correspondência como direito fundamental do ser humano
Não há necessidade – ou não deveria haver – de discussão sobre a importância e a necessidade da proteção do sigilo da correspondência em uma democracia.
Séculos atrás, era prática dos governantes a violação da comunicação por carta – único meio existente na época – entre seus súditos, tanto para saber suas opiniões, quanto para monitorar seus inimigos.
Um exemplo utilizado quando se estuda o Direito Constitucional é o cabinet noir, que os reis da França mantiveram ativo até a queda de Luís XVI durante a Revolução Francesa.
Esse acontecimento histórico é citado por Celso Ribeiro Bastos[1]:
“O reclamo por um segredo de correspondência é muito antigo e pode-se dizer que surgiu ao mesmo passo em que se deu a criação de um serviço postal. Este novo meio de comunicação, embora propiciando grandes facilidades para os particulares, trouxe consigo, sem dúvida, a possibilidade de os reis assenhorearem-se do conteúdo das cartas. Nos reinados de Luís XIV e Luís XV tornou-se prática corrente a passagem da correspondência por um chamado cabine noar (Rivero, Les libertés publiques, PUF, p. 77)”.
Quase duzentos anos depois da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” estava sendo promulgada a nossa Constituição Federal de 1988, que tem definido no inciso XII do artigo 5º[2]: “é inviolável o sigilo da correspondência e (…)”.
No entanto, o que está para ser apreciado no STF pode alargar essa proteção para alcançar os mercadorias em circulação comercial no país, não as ideias ou pensamentos de remetente e destinatário.
A exceção constitucional ao sigilo das correspondências
Embora seja cláusula pétrea, o sigilo da correspondência tem exceções, que são previstas os artigos 136[3], 137[4] e 139[5] da própria Constituição Federal durante estado de defesa e estado de sítio.
Dentro de uma interpretação sistemática da Constituição Federal, ao prever os estados de defesa e de sítio, será que o constituinte excluiu o sigilo da correspondência preocupado com os milhões de pacotes de mercadorias (fim comercial) que circulam nos Correios e outras transportadoras – hoje – ou com a circulação de ideias por carta – em 1988, quando um reles telefone fixo era artigo de luxo?
A tese vencedora até o momento
Em apertadíssima síntese e humilde adaptação, o então ministro relator Marco Aurélio Mello acatou a tese de que, tal qual cartas e telegramas, os pacotes devem ser protegidos pelo sigilo constitucional à correspondência.
Porém, esse entendimento vai além do bem jurídico que se quer proteger: a circulação de ideias sem censura, conhecimento ou intervenção de qualquer governo ou indivíduo.
A abertura de pacotes (encomendas) pelos órgãos de fiscalização, quando evidenciada alguma infração legal – e depois de análises prévias não invasivas – busca a proteção da sociedade, o correto pagamento de tributos e não fere qualquer liberdade individual.
Inclusive, não é demais lembrar que não existe direito absoluto no Brasil. O STF eventualmente professa a mitigação de um direito fundamental em função de outro.
Por exemplo, garantiu à Receita Federal do Brasil acesso a dados bancários dos contribuintes sem necessidade de autorização judicial[6]. A maiori, ad minus, certo?
Já no caso específico das correspondências, cito o HC 70814[7], de relatoria do ministro Celso de Mello, cuja ementa do julgamento diz na parte final que “a cláusula tutelar da inviolabilidade do sigilo epistolar não pode constituir instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas”.
O conceito de correspondência
Antes da CF/88, vigia a constituição de 1967, alterada pela Emenda Constitucional 1[8] de 17/10/69, que, mesmo promulgada depois do famigerado AI5, já previa “É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas e telefônicas”.
Foi para regulamentar esse inciso que se promulgou a Lei 6.538, de 22 de junho de 1978, para dispor sobre os Serviços Postais.
Os artigos 5º[9], 7º[10] e 47[11] prestam-se a definir as atividades dos Correios e os elementos que dizem respeito a esse artigo e à discussão do Tema 1.041.
Da sua leitura, fica claro que o conceito de correspondência está intimamente ligado, e não poderia ser diferente, à transmissão de informação pela via escrita, sem fins comerciais, enquanto a encomenda engloba justamente o envio de pacotes contendo objetos de operações de compra e venda.
Mesma linha de raciocínio da Procuradoria-Geral da República no parecer do RE 1116949, que afirmou ser o sigilo de correspondência vinculado à proteção da liberdade de expressão e da livre circulação de ideias, não abrangendo encomendas, ainda que enviadas por via postal[12].
Sabe-se que nem sempre o Direito e a Língua Portuguesa falam o mesmo idioma, mas cabe aqui trazer o conceito de correspondência do Dicionário Aurélio[13]: Troca de cartas, bilhetes ou telegramas.
Voltando ao disposto na lei do serviço postal, resumidamente:
Essa distinção entre os conceitos de correspondência e de encomenda estão firmados dentro da organização da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos.
Alguns exemplos são as definições da página da empresa internet[14], que traz tratamento separados para cada um dos serviços, ou recente entrevista[15] do então presidente em 2022, onde diz: “…observamos a inversão da participação de correspondências, dando frente ao segmento de encomendas. (…)”.
A própria Corte separa e distingue bem esses conceitos ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 46[16], sobre o monopólio estatal dos Correios, onde acabou por excluir encomendas e impressos dos serviços dos públicos postais a serem prestados em regime de exclusividade pela empresa[17].
Da análise do que se decidiu: se outras empresas estão autorizadas a transportar encomendas, e o envio de correspondência é atividade exclusiva da ECT, então encomenda não é correspondência.
Replicando parte do voto do ministro relator desta ADPF: “(…) a missão do Supremo, a quem compete, repita–se, a guarda da Constituição, é precipuamente a de zelar pela interpretação que se conceda à Carta a maior eficácia possível, diante da realidade circundante (…)”.
Outro ponto relevante, trazido pelo redator do acórdão do leading case, ministro Edson Fachin, sugere a aplicação do artigo 10[18] da lei postal, contudo, esse artigo fala em ‘carta’, não encomenda.
E não poderia ser diferente, afinal a abertura de uma carta é sim um ato extremo e de necessária liturgia, por assim dizer.
Ao mesmo tempo, esse procedimento nas encomendas, se fosse o caso, seria na prática inexequível dada a quantidade de remetentes e/ou destinatários envolvidos.
A atuação do Estado na circulação de encomendas
Desde o advento da internet o mercado sofreu mudanças gigantescas e o comércio eletrônico criou uma demanda por transporte de encomendas que não cessa de crescer. Somente entre 2019 e 2022 foram R$ 450 bilhões[19].
É dentro desse cenário que atuam os órgãos de combate a crimes como descaminho, contrabando e contrafação, sem falar no tráfico de armas e drogas.
Com a tecnologia disponível atualmente, como equipamento de verificação não-invasiva (raio-X), e as regras de envio de encomendas, como a obrigação de Declaração de Conteúdo[20] ou de Nota Fiscal acompanhando a mercadoria, a seleção de alvos configura-se muito mais efetiva e eficaz.
A fiscalização, por óbvio, não deve ter poder de abrir cartas, mas sim pacotes de encomenda – que tenham cristalina finalidade comercial – para, quando confirmada a irregularidade da mercadoria, esta ser apreendida.
Os números divulgados pela Receita Federal do Brasil demonstram o resultado positivo deste tipo de atuação: os remetentes das mercadorias fiscalizadas precisam sempre ser intimados[21] a comprovar a regularidade dos itens, e os dados mostram que poucos conseguem[22].
Assim, se o Supremo Tribunal Federal mantiver o termo “pacote” na tese em votação, ou não deixar claro que as hipóteses legais diferenciam carta e afins de encomenda (mercadoria), a tendência é de os criminosos verem seus problemas de logística completamente resolvidos.
Parafraseando o então ministro relator: ‘Não vivêssemos tempos estranhos’ seria óbvio que a garantia de direitos fundamentais não pode proteger quem atua à margem da lei.
Fonte: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-sigilo-a-correspondencia-vs-o-combate-ao-contrabando-e-descaminho-07082023